Acessibilidade / Reportar erro

Teste de desencadeamento alimentar oral na confirmação diagnóstica da alergia à proteína do leite de vaca

Resumos

OBJETIVO: Verificar a prevalência de alergia à proteína do leite de vaca em crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca. MÉTODOS: Foram estudadas 65 crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca. A definição diagnóstica ocorreu após teste de desencadeamento alimentar oral aberto, realizado no mínimo 15 dias após dieta de exclusão e ausência de sintomas, com período de observação de até 4 semanas após o teste. Considerou-se caso (alergia à proteína do leite de vaca positiva; n = 35) criança com reaparecimento do sintoma que motivou a realização do teste, e comparação (alergia à proteína do leite de vaca negativa; n = 30) aquela sem sintomas após o período de observação do teste. RESULTADOS: A mediana de idade foi 5 meses (P 25-75% 2-9 meses) no grupo caso e 7 meses (P 25-75% 4-11 meses) no grupo comparação (p = 0,05). O teste não confirmou alergia à proteína do leite de vaca em 46,8% dos pacientes com sintomas atribuídos à ingestão de leite de vaca. Reação tardia ocorreu em 77,1% (27/35) dos casos com teste positivo, sendo 18/27 na primeira, 3/27 na segunda e 6/27 na terceira semana de observação. Encontrou-se associação estatística significante entre manifestações cutâneas e teste positivo (p = 0,04), mas não com sintomas digestivos e respiratórios. CONCLUSÃO: Os resultados corroboram a necessidade do teste de desencadeamento alimentar oral para determinar os pacientes que realmente têm alergia à proteína do leite de vaca e se beneficiarão com dieta de exclusão de leite de vaca.

Hipersensibilidade a leite; condições patológicas; sinais e sintomas; lactente; pré-escolar


OBJECTIVE: To determine the prevalence of cow's milk protein allergy in children with symptoms attributed to cow's milk intake. METHODS: Sixty-five children with symptoms attributed to cow's milk intake were studied. Diagnosis was established after an open oral food challenge test carried out at least 15 days after an elimination diet and absence of symptoms, with a follow-up period of up to 4 weeks after the test. The children who remained asymptomatic after this period were considered negative for cow's milk protein allergy (n = 30), while those whose symptoms reappeared were considered positive (n = 35). RESULTS: The median age was 5 months (P 25-75% 2-9 months) in the case group and 7 months (P 25-75% 4-11 months) in the comparison group (p = 0.05). The test did not confirm cow's milk protein allergy in 46.8% of the patients with symptoms attributed to cow's milk intake. A delayed reaction occurred in 77.1% (27/35) of the cases testing positive, 18/27 in the first week, 3/27 in the second week, and 6/27 in the third week of follow-up. A statistically significant association was found between cutaneous manifestations and positive test result (p = 0.04). However, there was no association with digestive and respiratory symptoms. CONCLUSION: Our results confirm the need of an oral food challenge test to determine which patients really have cow's milk protein allergy and may therefore benefit from a diet free of cow's milk.

Milk hypersensitivity; pathological conditions; signs and symptoms; infant; preschooler


ARTIGO ORIGINAL

Teste de desencadeamento alimentar oral na confirmação diagnóstica da alergia à proteína do leite de vaca

Maria das Graças Moura LinsI; Márcia Raquel HorowitzII; Giselia Alves Pontes da SilvaIII; Maria Eugênia Farias Almeida MottaIV

IDoutoranda, Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE

IIAcadêmica, Medicina, UFPE, Recife, PE, Bolsista, PIBIC/FACEPE/CNPq

IIIDoutora, Medicina, Professora associada e coordenadora, Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Departamento Materno Infantil, UFPE, Recife, PE

IVDoutora, Medicina, Professora adjunta, Departamento Materno Infantil, UFPE, Recife, PE

Correspondência Correspondência: Maria das Graças Moura Lins Rua Cap. Sampaio Xavier, 205/1801 - Graças CEP 52050-210 - Recife, PE Tel.: (81) 3427.3170, (81) 3223.5052 E-mail: gracaml@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Verificar a prevalência de alergia à proteína do leite de vaca em crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca.

MÉTODOS: Foram estudadas 65 crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca. A definição diagnóstica ocorreu após teste de desencadeamento alimentar oral aberto, realizado no mínimo 15 dias após dieta de exclusão e ausência de sintomas, com período de observação de até 4 semanas após o teste. Considerou-se caso (alergia à proteína do leite de vaca positiva; n = 35) criança com reaparecimento do sintoma que motivou a realização do teste, e comparação (alergia à proteína do leite de vaca negativa; n = 30) aquela sem sintomas após o período de observação do teste.

RESULTADOS: A mediana de idade foi 5 meses (P 25-75% 2-9 meses) no grupo caso e 7 meses (P 25-75% 4-11 meses) no grupo comparação (p = 0,05). O teste não confirmou alergia à proteína do leite de vaca em 46,8% dos pacientes com sintomas atribuídos à ingestão de leite de vaca. Reação tardia ocorreu em 77,1% (27/35) dos casos com teste positivo, sendo 18/27 na primeira, 3/27 na segunda e 6/27 na terceira semana de observação. Encontrou-se associação estatística significante entre manifestações cutâneas e teste positivo (p = 0,04), mas não com sintomas digestivos e respiratórios.

CONCLUSÃO: Os resultados corroboram a necessidade do teste de desencadeamento alimentar oral para determinar os pacientes que realmente têm alergia à proteína do leite de vaca e se beneficiarão com dieta de exclusão de leite de vaca.

Palavras-chave: Hipersensibilidade a leite, condições patológicas, sinais e sintomas, lactente, pré-escolar.

Introdução

A prevalência da alergia à proteína do leite de vaca (APLV) é descrita entre 2 e 8%1,2. Os resultados são conflitantes e de difícil comparação, devido aos diversos critérios diagnósticos e desenhos de estudo utilizados, sendo maiores as prevalências baseadas exclusivamente nas manifestações clínicas (em geral, percepção dos pais) do que quando se utilizam instrumentos diagnósticos mais objetivos, como o teste de desencadeamento alimentar oral3-5

A história natural da APLV difere da observada para outras proteínas alimentares, que ocorrem em fases mais tardias da vida, por ser a primeira proteína estranha introduzida na alimentação de um organismo que ainda está em maturação do mecanismo de tolerância oral a proteínas heterólogas, portanto, mais propenso ao desenvolvimento de alergias alimentares6.

Assim, é preciso considerar a baixa especificidade dos sintomas no diagnóstico de APLV, pois também podem indicar outras doenças, como doença do refluxo gastroesofágico, diarreia infecciosa, alterações anatômicas, constipação orgânica, etc.6. Ademais, na perspectiva da medicina evolutiva, o consumo precoce de fórmula láctea impede o contato do tubo digestório com os agentes bioativos do leite materno, propiciando o desenvolvimento de sintomas7. Esses agentes contribuem para a maturação imunológica e integridade da mucosa intestinal (dificultando a ocorrência de APLV) e a maturação da função motora (dificultando o aparecimento de sintomas por imaturidade funcional)7,8.

Atualmente, observa-se dificuldade no diagnóstico da APLV, com incidência reduzida ou elevada, resultando em prejuízo para a nutrição da criança e para a qualidade de vida da família, especialmente nos diagnósticos errôneos9. Portanto, são necessários estudos que utilizem critérios mais apropriados e possam auxiliar o diagnóstico da APLV. Este estudo teve o objetivo de verificar a prevalência de APLV em crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca.

Métodos

Foram convidados a participar da pesquisa pais de 66 crianças, referenciadas ao ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas (HC), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife (PE), com sintomas adversos relacionados à ingestão do leite de vaca pela criança, ou pela mãe em amamentação ainda consumindo leite de vaca e derivados. Os sintomas eram cutâneos (dermatite atópica e urticária), respiratórios (tosse e dispneia, rinites) e digestórios (regurgitação, vômitos, sangramento retal, constipação, diarreia e proctite). Constipação foi considerada quando a criança defecava duas ou menos vezes por semana, com fezes endurecidas e dor à defecação. O sangramento retal foi referido pelos pais como presença de sangue em qualquer quantidade, antes ou depois da defecação ou junto com as fezes. Proctite foi considerada ao exame físico pela presença de edema e eritema, com ou sem fissura, na região perianal, ainda consumindo leite de vaca e seus derivados. O mesmo paciente poderia apresentar um ou mais sintomas gastrointestinais ou associação destes com sintomas cutâneos ou respiratórios. Foram excluídos pacientes com outras doenças do trato digestório, alergia a múltiplas proteínas, sintomas respiratórios ou dermatite atópica isolados, em uso de antialérgicos e prematuros de muito baixo peso.

Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi aplicado um formulário, estruturado com dados da história individual, para avaliação de sintomas e sua relação com a exposição ao leite de vaca, registro de dados do exame físico, incluindo avaliação do estado nutricional e imunoglobulina E (IgE) total e específicas (anticaseína, anti β-lactoglobulina e anti α-lactoalbumina).

O estado nutricional foi avaliado com base na idade, peso e estatura, conforme recomendado por Gibson10. O peso foi mensurado em uma balança digital (FilizolaTM) com a criança despida. O comprimento ou altura foi aferido com estadiômetro de bebê nos menores de 2 anos e de parede (Tonelli®) com a criança descalça, com coluna e membros inferiores alinhados. Os índices antropométricos peso/idade e altura/idade foram calculados pelo programa Epi-Info versão 3.3.2, com base nos valores de referência do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) 200011. O valor do ponto de corte para baixo peso e baixa estatura foi o percentil menor de 5.

O nível de IgE total e específicas foi determinado pelo 3gAllergyTM Specific IgE Universal Kit e Immulite® 2000 3g, um imunoensaio por electroquimioluminescência com dois passos reacionais baseados numa tecnologia de fase líquida e em esferas revestidas. Considerou-se elevada a IgE total com níveis acima dos pontos de corte indicados pelas idades (recém-nascidos até 1 mês: 6,1 UI/mL; 1-2 meses: até 15 UI/mL; 3 meses a 5 anos: até 60 UI/mL) e, para IgE específicas, o valor igual ou acima da classe III (3,5-17,5 KU/L).

O teste de desencadeamento alimentar oral aberto foi realizado para definir o diagnóstico de APLV: crianças e mães, quando ainda amamentando, foram orientadas para seguir uma dieta de exclusão do leite de vaca e derivados durante pelo menos 2 semanas, utilizando fórmula de proteína isolada de soja. Todos os pacientes realizaram a dieta de exclusão pré-teste adequadamente. Havendo resolução dos sintomas, as crianças eram admitidas na enfermaria de Clínica Pediátrica do HC/UFPE, por 24 horas, para realização do teste de desencadeamento alimentar oral aberto modificado de Isolauri & Hill12, Sampson13 e Chapman14, da seguinte forma: 1) tempo 0: aplicou-se cerca de 2 mL de leite de vaca na pele do antebraço esquerdo; 2) tempo 15': aplicou-se cerca de 2 mL de leite de vaca na região perioral; 3) a partir do tempo 30', a cada 15 minutos, ofertou-se o leite de vaca gradativamente, em porções de 1, 4, 10, 20, 20, 20 e 25% do volume total calculado (0,5 g de proteína do leite de vaca sem lactose/kg), até o aparecimento de sintomas. O teste de desencadeamento foi suspenso sempre que o sintoma apresentado pelo paciente, referido pela família, antes do teste de desencadeamento, era reproduzido, incluindo-se o paciente no grupo APLV. Se os sintomas não apareciam durante a hospitalização, o paciente continuava a consumi-lo na quantidade habitual, pré-teste, duas a três vezes por dia. Foi agendada uma visita semanal de retorno ao ambulatório para averiguar a presença de sintomas, até 4 semanas consecutivas. O paciente que desenvolvia o mesmo sintoma relatado antes do teste de desencadeamento durante o período de observação foi incluído no grupo APLV ao final de 4 semanas de observação; e o paciente que não apresentava sintomas foi incluído no grupo sem APLV. Não houve aparecimento de sintomas diferentes dos apresentados antes do teste. Estes foram contrarreferenciados para continuar a investigação, e os primeiros foram mantidos em acompanhamento no ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica do HC/UFPE.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde (CEP/CCS) da UFPE sob nº 197/06.

As informações obtidas dos formulários e dos exames complementares de 65 pacientes foram armazenadas (codificando-se as variáveis categóricas) em arquivo de dados elaborado no programa de estatística Epi-Info, versão 3.3.2 for Windows, no qual foi realizada a análise estatística. As idades entre os grupos de comparação foram sumarizadas como medianas e comparadas pelo teste de Mann-Whitney. As diferenças entre as variáveis categóricas foram determinadas pelo teste de qui-quadrado. Os testes estatísticos foram considerados significantes quando o valor de p < 0,05.

Resultados

À admissão no estudo, a idade dos pacientes foi de 5 meses (P 25-75% 2-9 meses) no grupo APLV e de 7 meses (P 25-75% 4-11 meses) no grupo sem APLV (p = 0,05). Cerca de 50% dos pacientes com sintomas atribuídos à ingestão de leite de vaca não confirmaram APLV no teste de desencadeamento alimentar oral. Os pacientes relatavam inúmeros sintomas no momento da inclusão no estudo, na maioria dos casos; porém, no teste de desencadeamento alimentar oral, 24/35 pacientes positivaram com apenas um sintoma, e 11/35 positivaram com dois sintomas. Reação tardia ocorreu em 77,1% (27/35) dos casos com teste positivo, sendo 18/27 na primeira, 3/27 na segunda e 6/27 na terceira semana de observação.

Conforme se observa na Tabela 1, encontrou-se associação estatisticamente significante entre manifestações cutâneas e teste de desencadeamento alimentar oral positivo. A presença de sintomas digestivos e respiratórios não se associou estatisticamente com a confirmação do diagnóstico de APLV.

A IgE total foi elevada em 17/35 pacientes (33,8%) do grupo APLV e em 5/30 (16,7%) pacientes do grupo sem APLV, mas as IgE específicas foram elevadas apenas nos pacientes do grupo APLV: 3/35 (8,6%) para caseína, 3/35 (8,6%) para α-lactoalbumina e 5/35 (14,2%) para β-lactoglobulina. Destes, dois apresentavam vômitos e baixo ganho de peso associados à urticária, com sintomas vagais (palidez e sudorese); e três apresentavam apenas urticária. A Figura 1 descreve o número de pacientes com sinais e sintomas digestórios nos dois grupos.


Discussão

Em quase metade (46,8%) das crianças com sintomas atribuídos à ingestão do leite de vaca, a APLV não foi confirmada pelo teste de desencadeamento alimentar oral. Os pacientes relatavam inúmeros sintomas no momento da inclusão no estudo; porém, no teste de desencadeamento alimentar oral, 24/35 pacientes positivaram com apenas um sintoma, e 11/35 positivaram com dois sintomas, confirmando que as queixas relacionadas à ingestão de leite de vaca são excessivas. Esse resultado evidencia que, mesmo na presença de uma história clínica sugestiva de APLV, é preciso realizar investigação complementar com o teste de desencadeamento alimentar oral para confirmar o diagnóstico6,15. A predominância da APLV nos pacientes estudados ocorreu naqueles de menor idade, e a distribuição de frequência dos sintomas gastrointestinais, cutâneos e respiratórios foi semelhante à encontrada por Host16.

A APLV ocorre no organismo que não desenvolveu tolerância oral. Fatores envolvidos no estabelecimento da tolerância oral são genética, microbiota intestinal e idade do paciente, além de fatores associados aos antígenos17. No início da vida, a exposição a antígenos alimentares apresentados ao sistema imune ativa os linfócitos T reguladores, resultando em supressão da resposta imune e indução da tolerância oral18. Esse processo ocorre naturalmente na maioria das crianças em aleitamento materno exclusivo, expondo sua mucosa intestinal às baixas doses de antígenos alimentares presentes no leite materno, que induzem supressão ativa de reações imunes pela secreção mucosa de fator de crescimento tecidual beta (transforming growth factor beta, TGF-beta)18. No entanto, a permeabilidade intestinal aumentada possibilita o desenvolvimento de APLV, sobretudo quando há a oferta de proteína heteróloga19.

A criança em aleitamento artificial, além de estar em contato contínuo com proteínas estranhas numa fase de permeabilidade intestinal vulnerável, perde o benefício dos agentes bioativos do leite materno para proteção contra APLV7. O TGF-beta, citocina presente no leite materno, participa da produção de imunoglobulina A (IgA) pela mucosa intestinal e da supressão celular na resposta imune; níveis reduzidos propiciam sensibilização alérgica e APLV20.

A microbiota intestinal adquirida no período pós-natal também é necessária para o desenvolvimento de tolerância oral e expressão e função dos linfócitos T reguladores21. O aleitamento materno exclusivo é responsável pela colonização bacteriana pelo gênero bifidobactéria, que participa ativamente na tolerância oral22. Essas bactérias estão reduzidas nas crianças que usam fórmulas lácteas artificiais, favorecendo a ocorrência de APLV22,23.

Cerca de 50% dos pacientes com sintomas atribuídos à ingestão de leite de vaca não confirmaram APLV no teste de desencadeamento alimentar oral. Isso chama a atenção para o fato de que a presença de sintomas não implica, invariavelmente, a presença de doença, mas pode indicar um processo de maturação funcional em evolução, cabendo ao médico avaliar a interpretação dos pais e diferenciar entre saúde e doença7,8,24. É natural que os pais associem a presença de sintomas na criança de baixa idade à ingestão de leite de vaca, pois, na maioria dos casos, é o único ou o principal alimento consumido em curtos intervalos de tempo. Sintomas podem depender do início precoce de fórmula láctea, que dificulta a maturação da função motora gastrointestinal decorrente da ausência do estímulo dos agentes bioativos do leite materno no organismo7. Dessa forma, sintomas no lactente saudável possivelmente não representam doença na maioria das situações e podem indicar um problema de desenvolvimento funcional imaturo, aliado ao consumo de fórmula láctea. Portanto, regurgitação pode decorrer do aumento do tempo de esvaziamento gástrico e maior intervalo entre as mamadas propiciado pelo uso de fórmulas lácteas; diarreia pode resultar de sobrecarga de solutos no preparo do leite artificial ou alimentação excessiva a curtos intervalos de tempo; dificuldade na defecação pode indicar incoordenação entre pressão intra-abdominal e relaxamento do assoalho pélvico nos primeiros meses de vida; constipação pode iniciar com a mudança de leite materno para fórmula láctea ou introdução de sólidos ou engrossantes do leite; e nenhuma dessas situações representa doença, mas imaturidade orgânica e/ou erro alimentar24-27.

Na prática, os exames laboratoriais (teste cutâneo, dosagem de IgE) identificam apenas sensibilização pela positividade da IgE e possível reação imediata, mediada por IgE, sendo negativos nas crianças com sintomas gastrointestinais e provável reação tardia, mediada por células. O nível de IgE está associado com persistência à APLV, notadamente no mecanismo IgE mediado, e seguimento do paciente na marcha atópica, com duração prolongada das manifestações clínicas da APLV e aparecimento de outras manifestações alérgicas futuras28,29. A ausência de sintomas no curto prazo, ainda nos meses iniciais, indica maior probabilidade de desenvolvimento de tolerância oral clínica, mais comum nos mecanismos mediados por células30. Portanto, não se pode descartar que pacientes sintomáticos, de fato, apresentem APLV, porém de curta duração, enquanto a maturidade do sistema imune e a tolerância oral não são alcançadas28.

No período de dieta de exclusão de leite de vaca, os pacientes que não estavam em aleitamento materno exclusivo fizeram uso de fórmula de proteína isolada de soja como substituto nos 15 dias que precederam a realização do teste de desencadeamento alimentar oral. Apesar de a literatura não recomendar o uso desse tipo de fórmula para crianças menores de 6 meses com manifestações clínicas gastrointestinais, pelo risco de o paciente também apresentar alergia à proteína da soja (10 a 14% dos casos), as situações clínicas referidas cursam com elevado grau de permeabilidade intestinal e gravidade de apresentação clínica, comprometimento nutricional intenso (doença gastrointestinal eosinofílica, síndrome da enterocolite induzida por proteína alimentar, proctocolite alérgica), o que não foi o caso de nossos pacientes, que apresentavam sintomas isolados, sem inserção em nenhuma dessas situações clínicas específicas6,31-33. Conforme consta no Consenso Brasileiro de Alergia Alimentar, respaldado por sociedades médicas internacionais, essa formulação pode ser utilizada na condução de formas clínicas leves, mediadas por células34. O seguimento dos pacientes com teste de desencadeamento alimentar oral positivo que participaram deste estudo demonstrou resolução de sintomas, com evolução clínica favorável.

O teste de desencadeamento alimentar oral continua sendo a melhor forma para demonstrar relação causal entre antígenos alimentares e sintomas. Os resultados deste estudo corroboram a necessidade do teste de desencadeamento alimentar oral para determinar, com menor margem de erro, os pacientes que realmente têm APLV e que serão beneficiados com dieta de exclusão de leite de vaca.

Artigo submetido em 26.01.2010, aceito em 19.04.2010.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Apoio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/PROPESQ/UFPE) sob número de processo. 475291/2006-9.

Este estudo foi realizado no Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE.

  • 1. Host A. Frequency of cow's milk allergy in childhood. Ann Allergy Immunol. 2002;89:33-7.
  • 2. Sicherer SH, Sampson HA. Food allergy: recent advances in pathophysiology and treatment. Annu Rev Med. 2009;60:261-77.
  • 3. Rona RJ, Keil T, Summers C, Gislason D, Zuidmeer L, Sodergren E, et al. The prevalence of food allergy: a meta-analysis. J Allergy Clin Immunol. 2007;120:638-46.
  • 4. Aardoom HA, Hirasing RA, Rona RJ, Sanavro FL, van den Heuvel EW, Leeuwenburg J. Food intolerance (food hypersensitivity) and chronic complaints in children: the parents' perception. Eur J Pediatr. 1997;156:110-2.
  • 5. Zuberbier T, Edenharter G, Worm M, Ehlers I, Reimann S, Hantke T, et al. Prevalence of adverse reactions to food in Germany - a population study. Allergy. 2004;59:338-45
  • 6. Boyce JA, Arshad SH, Assa'ad A, Bahna SL, Beck LA, Burks AW, et al. Guidelines for the diagnosis and management of food allergy. 2009. p. 119. http://www3.niaid.nih.gov/topics/foodAllergy/clinical/Who/comments.htm Acesso: 30/03/2010.
  • 7. Goldman AS. Modulation of the gastrointestinal tract of infants by human milk. Interfaces and interactions. An evolutionary perspective. J Nutr. 2000;130:S426-31.
  • 8. Udall JN, Colony P, Fritze L, Pang K, Trier JS, Walker WA. Development of gastrointestinal mucosal barrier. II. The effect of natural versus artificial feeding on intestinal permeability to macromolecules. Pediatr Res. 1981;15:245-9.
  • 9. Gupta RS, Kim JS, Barnathan JA, Amsden LB, Tummala LS, Holl JL. Food allergy knowledge, attitudes and beliefs: focus groups of parents, physicians and the general public. BMC Pediatr. 2008;8:36.
  • 10. Gibson RS. Evauation of anthropometric indices. In: Gibson RS. Principles of nutritional assessment. New York: Oxford University; 1990. p. 248-61.
  • 11. Centers for Disease Control and Prevention (CDC-US). 2000 CDC growth charts: United States. http://cdc.gov/growthcharts Acesso: 18/01/2002.
  • 12. Isolauri E, Hill DJ. Guide for paediatricians on the diagnosis and treatment of severe cow milk allergy and multiple food protein intolerance in infancy. SHS; 1997.
  • 13. Sampson HA. Update on food allergy. J Allergy Clin Immunol. 2004;113:805-19.
  • 14. Chapman JA, Bernstein L, Lee RE, Oppenheimer J, Nickals RA, Portnoy JM et al. Food allergy: a practice parameter. Ann Allergy Asthma Immunol. 2006;96:S1-68.
  • 15. Nowak-Wegrzyn A, Assa'ad AH, Bahna SL,.Bock SA, Sicherer SH, Teuber SS, et al. Work Group report: oral food challenge testing. J Allergy Clin Immunol. 2009;123:S365-83.
  • 16. Host A. Cow's milk protein allergy and intolerance in infancy. Some clinical, epidemiological and immunological aspects. Pediatr Allergy Immunol. 1994;5:1-36.
  • 17. Chehade M, Mayer L. Oral tolerance and its relation to food hypersensitivities. J Allergy Clin Immunol. 2005;115:3-12.
  • 18. Peron JP, de Oliveira AP, Rizzo LV. It takes guts for tolerance: the phenomenon of oral tolerance and the regulation of autoimmune response. Autoimmun Rev. 2009;9:1-4.
  • 19. Weaver LT, Laker MF, Nelson R. Intestinal permeability in the newborn. Arch Dis Child. 1984;59:236-41.
  • 20. Kalliomäki M, Ouwehand A, Arvilommi H, Kero P, Isolauri E. Transforming growth factor-beta in breast milk: a potential regulator of atopic disease at an early age. J Allergy Clin Immunol. 1999;104:1251-7.
  • 21. Ishikawa H, Tanaka K, Maeda Y, Aiba Y, Hata A, Tsuji NM, et al. Effect of intestinal microbiota on the induction of regulatory CD25+ CD4+ T cells. Clin Exp Immunol. 2008;153:127-35.
  • 22. Tannock GW. What immunologists should know about bacterial communities of the human bowel. Semin Immunol. 2007;19:94-105.
  • 23. Björkstén B, Naaber P, Sepp E, Mikelsaar M. The intestinal microflora in allergic Estonian and Swedish 2-year-old children. Clin Exp Allergy. 1999;29:342-6.
  • 24. Hyman PE, Milla PJ, Benninga MA, Davidson GP, Fleisher DF, Taminiau J. Childhood functional gastrointestinal disorders: neonate/toddler. Gastroenterology. 2006;130:1519-26.
  • 25. Issenman RM, Hewson S, Pirhonen D, Taylor W, Tirosh A. Are chronic digestive complaints the result of abnormal dietary patterns? Diet and digestive complaints in children at 22 and 40 months of age. Am J Dis Child. 1987;141:679-82.
  • 26. Douglas PS. Excessive crying and gastro-oesophageal reflux disease in infants: misalignment of biology and culture. Med Hypotheses. 2005;64:887-98.
  • 27. Heacock HJ, Jeffery HE, Baker JL, Page M. Influence of breast versus formula milk on physiological gastroesophageal reflux in healthy, newborn infants. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 1992;14:41-6.
  • 28. Shek LP, Soderstrom L, Ahlstedt S, Beyer K, Sampson HA. Determination of food specific IgE levels over time can predict the development of tolerance in cow's milk and hen's egg allergy. J Allergy Clin Immunol. 2004;114:387-91.
  • 29. Jarvinen KM, Beyer K, Vila L, Chatchatee P, Busse PJ, Sampson HA. B-cell epitopes as a screening instrument for persistent cow's milk allergy. J Allergy Clin Immunol. 2002;110:293-7.
  • 30. Sicherer SH, Sampson HA. Cow's milk protein-specific IgE concentrations in two age groups of milk-allergic children and in children achieving clinical tolerance. Clin Exp Allergy. 1999;29:507-12.
  • 31. Bhatia J, Greer F. Use of soy protein-based formulas in infant feeding. Pediatrics. 2008;121:1062-8.
  • 32. ESPGHAN Committee on Nutrition, Agostoni C, Axelsson I, Goulet O, Koletzko B, Michaelsen KG, et al. Soy protein infant formulae and follo-on formulae: a commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2006;42:352-61.
  • 33. National Institute of Environmental Health Sciences, National Institutes of Health. Draft NTP brief on soy infant formula. 2010. 47p. http://ntp-server.niehs.nih.gov/?objectid=716A5EEB-F1F6-975E-781CA5472900FCAA Acesso: 01/04/2010.
  • 34. Solé D, Silva LR, Rosário Filho NA, Sarni RO, Sociedade Brasileira de Pediatria e Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia. Consenso Brasileiro sobre alergia alimentar 2007. Rev Bras Alerg Imunopatol. 2008;31:65-89.
  • Correspondência:

    Maria das Graças Moura Lins
    Rua Cap. Sampaio Xavier, 205/1801 - Graças
    CEP 52050-210 - Recife, PE
    Tel.: (81) 3427.3170, (81) 3223.5052
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      26 Jan 2010
    • Aceito
      19 Abr 2010
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br